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Noitadas

Valter e Raul já saiam para pedalar aos sábados à noite, na época em que o carro era a salvação do mundo e libertaria todos. Eram meados dos anos 70 e, mais do que hoje, falar sobre bicicleta era coisa de pobre ou maluco de camisa de força. Iam eles para a rua Augusta, que era o centro dos acontecimentos e paqueras de São Paulo, onde fervilhavam carros subindo e descendo, exibindo suas cores, rodas, barulhos e potências e, se houvesse oportunidade ou interesse, parando janela a janela para paquerar. Valter, em sua bicicleta amarela e branca, vestia roupa idêntica a de um padre, metia sua bicicleta entre os carros e dava uma longa benção ao futuro casal que namorava. Aquilo tinha o sabor delicioso de comédia italiana.

Quando se cansavam de ver os paqueras com cara de besta seguiam o programa obrigatório: comer e beber algo em outro ponto de encontro. Nesses locais, os que não passavam na frente acelerando, estacionavam na porta da lanchonete e ficavam conversando e paquerando sentados no interior ou encostados nos carros. Em dias de frio aproveitavam o quentinho do capô.
O bacana para os amigos ciclistas era ficar observando as expressões do povo com as bicicletas deixadas encostadas soltas na janela da lanchonete. Alguns chegavam perto e até mexiam nelas. Houve um dia que um estranho saiu pedalando pela calçada, passando entre meninas e comentando rindo algo para seus amigos motorizados. Era líquido e certo que a bicicleta voltaria, os tempos eram outros e não havia preocupações. As duas bicicletas ali estacionadas causavam mais reações do que a maioria dos carros ao redor.

Encontrar uma bicicleta pelas ruas à noite naquela época era algo inusitado e até espantoso. Já havia pessoas que saíam para pedalar nos fins de semana, durante o dia. Uns poucos iam ao parque mais próximo. Pedalar a noite pelas ruas e avenidas era praticamente impensável para aquela geração do Brasil maravilha. Os comentários para quem fazia isto era um tanto maldoso, até mesmo quando vinha do pessoal da esquerda ou de vanguarda. Durante mais de uma década praticamente só se viam alguns guardas noturnos e raríssimos trabalhadores em bicicleta. Educados e classe média ou alta pedalando era virtualmente zero. Não era chique, não era sensato, parecia coisa de idiota. Só valia para crianças, e mesmo assim dentro de limites. Usar carro era fácil, prático, não custava muito, podia-se estacionar praticamente na porta de qualquer lugar. O uso da bicicleta não fazia sentido, e de certa forma não fazia mesmo. Só depois do surgimento do mountain bike, a partir de 1988, é que começaram a surgir os primeiros chiques em pedais. Eram tão poucos que se podia contar nos dedos, mas era chique e dava status, o que bastava.

Ainda nesta época, um amigo de Renato era dono de um "point", meio bar, meio boate, coisa da moda, sofisticado, que ficava no Brooklin. Renato foi até a casa do primo e perguntou se queria dar um pulo numa festa "quente". E foram de bicicleta. Chegaram lá e o porteiro já conhecia Renato, mas não deixou que as bicicletas fossem guardadas na lateral da casa. Cadeado? Tranca? Naquela época? Brincadeira? Deixar a bicicleta no meio da rua a noite toda? Nunca! Como fazer?
- Espera aqui, disse Renato. Vou pegar um convite para você lá dentro e pedir para entrar com as bicicletas. Já volto. E deixou sua bicicleta nas mãos do primo. Foi e demorou, demorou, e o primo acabou pegando no sono agarrado nas duas bicicletas. Chegou a chover leve e ele nem percebeu. Lá pelas 5 da manhã, Renato reapareceu um tanto "beubo" e perguntou por que o primo não tinha entrado e porque estava molhado?
- Deixa para lá. Você consegue pedalar de volta?
- Não estou tão ruim assim. Vou fácil.
Pegaram um trecho da avenida Santo Amaro, que estava completamente vazia, e então Renato dormiu na bicicleta e continuou pedalando como se nada houvesse. Depois de uns bons 100 metros nesse embalo, a bicicleta começou a correr para a direita em direção à calçada e ao meio fio.
- E... e... e... vai cair, vai cair... - saiu soprado num resto de voz do primo que queria gritar "acorda!".
E Renato teve a sorte grande de bêbado e bateu no meio fio num trecho de calçada rebaixada. Com o suave tranco voltou a si e, não só não caiu, mas também voltou, controlou a bicha, passou no estreito vão entre a árvore e a parede, e foi para a rua como se nada houvesse acontecido. Os Santos têm uma paciência com bêbado!

Um dia inauguraram uma pizzaria que, na época, era coisa para lá de chique. E lá foi o jovem casal de bicicleta. Ela, alta, esguia, cabelo liso e comprido até quase a cintura, especialmente bonita naquela noite, vestindo blusa, colete e uma calça justa que, mesmo assim, necessitava ser dobrada, para não sujar na corrente. Chegaram lá e se depararam com uma longa fila de convidados entregando seus carros, e outra na porta de entrada. Um dos manobristas ficou olhando os ciclistas com curiosidade e estranheza enquanto tentavam estacionar suas bicicletas na parede próxima à porta de entrada. E aí começou a divertida confusão.
O manobrista, muito bem educado, não fazia idéia de como deveria se portar com convidados como aqueles: ciclistas. Muito constrangido, com a voz deixando transparecer que não tinha muita certeza de como agir diante da situação, pediu - Por favor, as bicicletas não podem ficar aí.
E o rapaz logo brincou: - Posso lhe entregar as chaves para você estacioná-las?
O manobrista sorriu meio sem jeito e foi se aproximando - Por favor, deixe as bicicletas ali - disse apontando para longe.
- Se nós tivéssemos vindo de carro...
- Por favor, aí vai atrapalhar a gente. Põe a bicicleta ali - com voz insegura, sem agressividade, educada, mas ainda apontando para longe.
- Você olha com carinho as bicicletas? Não vai ter problema? Elas vão estar lá quando voltarmos? - perguntou a linda ciclista, com seu charme, curvando-se para desdobrar sua bainha da calça, longos cabelos quase tocando o chão.
- Pode deixar que nós vamos cuidar.
- Mas lá vai ficar muito longe. Aqui, encostadas na parede, não vão atrapalhar, você não acha?
- A senhora tem toda razão.
Os outros manobristas passaram a observar com cuidado a situação estranha, com olhos voltados para a beleza feminina envolvida. Acabaram completamente desligados dos carros que continuavam chegando. E o trânsito se fez. Algumas buzinas tocaram, mas os olhares voltaram-se para os ciclistas. A fila de convidados na entrada também ficou congestionada. A linda ciclista curvou-se novamente, desdobrou delicadamente a outra perna da calça, levantou-se, esticou-se, recompôs seu colete, entregou sua bicicleta para um outro manobrista, muito atencioso. As bicicletas foram encostadas ali mesmo na parede, e lá ficaram. Durante muitos anos, quando o casal chegava os manobristas saltavam para ajudá-la e logo segurar a bicicleta. Casal e manobristas se fizeram amigos.

Dia de festa. Preparo especial para sair sábado à noite. Música dançante de fundo, revirar o armário para escolher as roupas, banho cuidadoso, barba bem feita, última olhada para ver se está bem. Um sorriso perante o espelho. O importante toque do colete de jeans amarelo para ficar mais jovial, chique e, principalmente, visível ao pedalar. Escolher a melhor bicicleta para a ocasião, prender as duas pernas da calça nova, sair para rua e sentir-se feliz.
Pedalar com calma sentindo o vento no rosto a frear o suor. Nas paradas dos semáforos, olhar discretamente a expressão dos motoristas e motociclistas que também estão indo para suas noitadas. Chegar na festa, ser recebido com distinção pela coragem de pedalar a noite (?) e ter o direito de estacionar a bicicleta praticamente dentro da festa. Os outros convidados passam rodando para encontrar vaga.
Esperar um pouco para efetivamente entrar na festa para que o leve suor seque por completo. O lenço dá conta do resto - Vamos lá! A cada abraço, ouvir a mesma pergunta curiosa: "veio de bicicleta?". E usar isto para iniciar uma breve conversa rindo. Charme.
Voltar para casa de madrugada por caminhos alternativos, no silêncio total do interior de bairro, que em dias de névoa fazem os trajetos mais surpreendentes ainda. Perceber quão desagradável é ter que cruzar as sempre barulhentas e mal cheirosas avenidas. Voltar para ruas estreitas e desertas e sentir o perfume doce das damas da noite. Dizer boa noite para os poucos que vão ficando para trás, guardas-noturnos, trabalhadores, até mesmo motoristas que voltam de suas festas com a janela aberta. Parar num café 24 horas, tomar algo para esquentar e, logo depois, chegar em casa quente e relaxado. Um banho rápido e um sono de qualidade.
No dia seguinte acordar bem. Olhar para a bicicleta e ver que ela foi a grande dama da noitada. Nela está grudado o telefone que na escuridão não foi notado, mas é tão bem vindo. Olhar de novo para a bicicleta, fazer-lhe um carinho com um leve e maroto sorriso. Obrigado.

 
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