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Sobre mais uma morte de um ciclista em São Paulo
Texto publicado no site: http://www.sustranlac.org
Arturo Alcorta

São Paulo, a cidade, vem mantendo uma média de aproximadamente 60 ciclistas mortos por ano. A maioria das mortes, segundo dados da CET, Companhia de Engenharia de Trânsito, acontece principalmente nas principais avenidas e acessos da cidade, portanto provavelmente onde há muito trânsito e veículos grandes, como ônibus e caminhões. A maioria dos acidentados são homens adultos, trabalhadores, portanto de baixa renda. Ou seja, são acidentes que acontecem longe do Centro e com "desconhecidos", o que raramente gera notícia.

A morte de Márcia tem inúmeras diferenças. Ocorreu na avenida que se chama Paulista e é considerada o símbolo desta metrópole, como se diz por aqui. Márcia era de classe média, mulher, alta, esguia, bonita, simpática, educada, articulada, 40 anos, além do mais participava do Bicicletada, pedalava bem, passava com freqüência pelo local onde se acidentou, avenida que tem muito trânsito, mas não é dos mais perigosos da cidade. Ou seja, Márcia tinha tudo para não virar estatística. Por ironia do destino não só morreu no ponto mais chamativo da cidade, como seu corpo esmagado ficou estendido ali por 4 horas.

E as ironias não param por ai: morreu logo ali, muito próximo à esquina de onde parte a Bicicletada São Paulo, um pequeno canto de concreto que hoje é conhecido como "Praça da Bicicleta" que há pouco tempo foi reformada e sequer tem mais os paraciclos ou qualquer vestígio de bicicleta. O Instituto Médico Legal, fica também ali perto, a não mais que uns mil metros de onde o sangue manchava o asfalto, mas a Polícia Técnica demorou 4 horas para chegar e liberar o corpo. Do lado das autoridades fica claro que não houve uma ordem maior para resolver o "problema", fosse para liberar o trânsito, fosse o retirar de lá o constrangimento político, ou fosse, antes de mais nada e principalmente, uma questão humana com a alma ali estraçalhada. Fosse pelo o que quer que fosse, ninguém merece aquela brutal cena. Ela caiu na frente da roda traseira do ônibus e teve cabeça e parte do dorso estraçalhados. A bicicleta ficou praticamente inteira.

O impacto que (de?) tal imagem (sim imagem) foi sem precedentes para esta cidade e sociedade onde a violência brutal é trivial e bem assimilada. Poucas vezes na história de São Paulo um acidente de trânsito foi tão noticiado e gerou tantas outras matérias. A bicicleta que já vinha sendo boa pauta se transformou eixo da ordem do dia. Bicicleta é perigosa? Depois de uma morte tão simbólica, mais que nunca. O discurso foi reforçado no "é preciso fazer algo".

Três dias depois da morte de Márcia, na sexta-feira à noite, dia e hora da Bicicletada, foi realizada uma caminhada pela avenida Paulista com os ciclistas empurrando as suas bicicletas até o local do acidente para ali criar um memorial. Seguiu silenciosa, debaixo de chuva, como o trânsito passando com olhares de pesar. Confesso que poucas vezes na minha vida me senti tão mal, tanto pela morte da menina com quem conversei uma única vez, quanto por uma sensação estranha de fracasso destes meus 25 anos de luta pela melhoria de vida para os ciclistas. Sinto sempre o mesmo, em menor intensidade, quando leio os relatórios oficiais sobre acidentes. Já vi outros acidentes fatais, já tive que dar entrevistas sobre alguns, mas em nenhum havia uma manifestação tão densa quanto esta. Todos os anteriores foram interiorizados como corpos estendidos no chão - é assim que se tem que perceber a "coisa" ou do contrário se perde a neutralidade de análise dos fatos que é o que traz a verdade e a segurança para o ciclista que passará ali a seguir. Márcia escapou deste lugar comum - infelizmente. Mesmo para quem não viu a cena foi brutal.

Sensação estranha porque a luta é esta mesma. Márcia não será a última, muito pelo contrário. Todos os fatores mostram que muitos vão grudar no asfalto e pintar sua marca vermelha que os pneus vão apagar em pouco tempo e a avenida voltará a ter normalizado seu trânsito de passagem. Sempre que o horror vem me pergunto como algumas pessoas que de fato tem responsabilidade sobre o que acontece nesta cidade podem dormir em paz com todo este barulho. Mas eles dormem, não tenham dúvida, porque todos nós nos acostumamos com o horror e nossos erros, nossas impotências; se é que são erros e impotências.

A seqüência do fato é que nos dias que se seguiram, e até hoje, uns quinze dias depois, motoristas parecem ter aprendido uma amarga lição e estão tratando de ter mais cuidado. Algumas reações beiram o patético, mas são agradáveis para quem pedala. Há motorista que passa por você quase que pedindo desculpas por atrapalhar a pedalada. Passei a perceber este estado de espírito geral da população a partir do depoimento (http://www.youtube.com/watch?v=WBC2obB5jFc) de Teresa D'Aprile, do Saia na Noite, que aconteceu enquanto íamos para uma entrevista para Rede Globo de TV. Não havia me dado conta porque como velho de guerra geralmente trato o trânsito com um distanciamento estratégico e não percebo o que acontece em volta, mas Teresa D'Aprile tem toda razão. Todos afirmam o mesmo: os motoristas estão assustados.

O trânsito de São Paulo, assim como de inúmeras grandes cidades, deve ser descrito como uma guerra. Os números do Brasil, 35 mil mortos (oficias) ao ano só no trânsito, sendo que 1.500 na cidade de São Paulo, não pode ser citado com outra metáfora que não guerra; até porque há guerras (literais) que não produzem tais números. A maioria é pobre e pedestre. Precisa dizer mais?

 
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