www.escoladebicicleta.com.br/home
artigos
Insanos

Durante muitos anos, para a grande maioria dos Paulistanos, o prazer de sair pedalando uma bicicleta se resumia praticamente ao dia do Passeio Ciclístico da Primavera. Era uma tremenda festa! Uma massa incrível de ciclistas sem prática se reunia ao lado do Obelisco do Ibirapuera, pedalava por 17 km de avenidas e no dia seguinte estava destruída. Sucesso total... principalmente nas bicicletarias. E uma ressaca incrível de pedal o resto do ano.

Ele entrou na festinha e simplesmente perdeu a noção de que lado do espelho se encontrava a sua própria realidade. Estavam todos muito loucos para perceber a sutileza. Riram muito do que parecia ser uma palhaçada sem se dar conta que aquele ali nunca mais voltaria de sua viagem. A imagem que ficou em minha cabeça é brutal. Não foi o único daquela geração. Muitos se perderam. Profundamente triste.

Pedalar na São Paulo daquela época, anos 70 e 80, foi maravilhoso. Havia pouquíssimos ciclistas nas ruas e os espantados motoristas tinham um cuidado muito grande com aqueles "loucos". Teria sido o momento ideal para se construir uma cidade amiga da bicicleta, do pedestre e da vida.

A busca do prazer algumas vezes não encontra limites. Alegria, felicidade, prazer procuram caminhos, alguns deles tortos, e não raro o sujeito se perde no meio do trajeto. "Para onde eu estava indo mesmo? O que estava fazendo?" E invariavelmente este estado ou local tão desejado é misterioso, descrito de uma maneira um tanto enigmática, quando não alucinante.

Sentar no conforto do carro e sentir prazer sempre foi uma venda fácil de fazer. A idéia condizia com a realidade. As cidades eram vazias, você tirava o carro da garagem e parava dentro da faculdade. No caminho de ida não raro encontrava um amigo e íamos tirando racha. Divertido. Subíamos para as aulas com a adrenalina a mil. Havia uma fé que um dia os problemas seriam resolvidos e todos construiríamos para uma boa cidade, uma vida mais feliz. Então por que não relaxar e deixar que os que têm competência nos guiem? Eles sabem o que fazem.

Algumas religiões e culturas importantes indicam, apontam, mostram que o caminho para chegar ao paraíso passa pelo conhecimento da "verdade". Há quem fale que o caminho também passa pelo sofrimento ou através dele. "No pain, no gain", sem dor não há ganho (vantagem, conquista, lucro; como queira), em versão quase capitalista.

Uma proposta foi apresentada para o Governador, que gostou da idéia e a fez apresentar para o Prefeito; que gostou da idéia e disse que o "sim" dele dependia dos órgãos técnicos, portanto que a idéia fosse apresentada ao responsável. E lá foi a proposta para implantação de um sistema cicloviário na grande capital parar na mão do responsável, do pastor das ovelhas do trânsito. Ano de 1983. "Não faço, por que não faço. E ponto!" Resposta final. E acabou. Entorpecidos pelo vício do carro e pela fluidez do trânsito todos acharam sensata a decisão do técnico, daquele que tinha o conhecimento, que era o "homem". Ele sabe o que faz. Haverá um futuro melhor que ele haverá de construir.

Todos os caminhos para uma vida mais equilibrada e tranqüila mostram-se longos e complicados. Felicidade imediata não existe, e dizem existir um preço, não raro, bastante alto. Busca-se o prazer com insistência e com todas as ferramentas possíveis. É nosso dever! Se o que nos é ofertado não nos dá suficiente prazer, vamos ao próximo passo, vamos para o novo, pagamos o preço. Na novidade estará a solução. Normalmente não está, porque a novidade não pára, nunca chega plena e não tem fim. Correr atrás se torna um processo cansativo, dolorido, frustrante.

Já nos últimos anos da faculdade, em 1978, não era tão fácil encontrar lugar para estacionar. Nas proximidades do Cine Belas Artes apareceram os primeiros guardadores de carros, que no Rio de Janeiro e outras capitais chamam-se "flanelinhas". Então algo já não cheirava bem. Era um bom sinal do fim da festa, mas ninguém quis olhar. O que é bom acaba, mas ninguém quer largar. Usar ônibus, andar a pé, pedalar, "que coisa ridícula, de pobre!". Assim foi no passado, assim é e assim será. Será?

Na acupuntura há várias descrições de como pode ser uma dor, algumas delas poéticas, como a que descreve com precisão a dor que é "como o gotejar da água da chuva na pedra". É triste que também não sejamos educados para a dor, para o sofrimento. Mal somos para a felicidade, como poderíamos ser educados para a dificuldade? "Ser educado para a dificuldade, para o sofrimento, a dor, é coisa de masoquista".

2008. Trânsito é estacionamento. Praticamente sair da garagem e ficar parado no meio da rua. Não há mais previsibilidade de tempo de viagem. Diz a propaganda que a liberdade está na suas mãos - pegue na direção do carro e você ganha sua liberdade. Que prazer! Não há outra saída a não ser o automóvel. O resto é uma droga.

Se deve culpar o traficante. Ele é o grande responsável pelas desgraças que vivemos: violência, roubos, assaltos, seqüestros, mortes, juventude perdida, lares desfeitos, famílias desintegradas. Ele é o grande responsável, o traficante é o grande responsável. Tudo, no entorno da droga e do traficante, é livre da responsabilidade. O usuário não tem nada a ver com o crime. Ele paga para ter momentos de prazer, para se aproximar do paraíso por uns minutos. A sociedade é vítima. O dono do boteco está trabalhando. Se o carinha já tomou 10 doses de pinga ele não tem nada a ver com isto. Está lá para vender. Os vizinhos não têm nada a ver com a vida dos universitários que matam as aulas para encher a cara de cerveja. O bairro fica alegre.

A visão do que é trânsito é individual.

Ninguém tem nada a ver com a vida do outro. Cada um faz o que quer. As portas do paraíso estão abertas. Entra quem quer.

É óbvio que a culpa pelo trânsito estar do jeito que está é do pessoal do Trânsito e dos Transportes. São eles quem mandam. Se o prefeito fosse competente, e quisesse, tudo seria melhor. Aquela ponte nova, imensa, vai resolver todos os problemas. Metrô, tem que ter Metrô, ou não dá para largar o carro. Eu pago impostos, paguei pelo carro, tenho direito.
O outro é o responsável.

Conheci pessoalmente um único alcoólatra que de fato largou a bebida. Um dia acordou cedo, o que era bastante incomum para sua vida de então, e meio trôpego e exalando pelos poros o cheiro do álcool da noite anterior, parou junto à família que tomava café da manha e disse com firmeza: "A partir de hoje não bebo mais". Alberto Massa era seu nome. Ninguém acreditou, mas depois de um processo solitário de desintoxicação, que é doloroso, brutal, largou a bebida e reaprendeu a viver.

Desintoxicação de nossos vícios é um processo que tem seu custo. É muito difícil olhar no espelho e mudar velhos hábitos, sejam eles bons ou maus. O conceito do carro é uma maravilha. Eu me sinto feliz do jeito que sou e vivo....

"Ajuda-te que ajudar-te-ei". Nem Deus oferece ajuda a troco de banana. O Paraíso tem seu preço.

Fechada a porta, os barulhos da rua diminuem; o banco é confortável, os comandos estão à mão; ligado o ar condicionado, não se sente mais calor ou frio; a música pode ser trocada; as portas travadas; e no caso de um acidente estarei seguro.

Todos que sentam pela primeira vez numa bicicleta reclamam pelo menos da dor na bunda. Selim sempre é um problema. E a maioria volta para o carro rapidinho.

Quem experimentou a medicina oriental, como a acupuntura, acaba aprendendo que dor pode levar a resultados diferentes do sofrimento. Conhecer e saber descrever que tipo de dor se sente faz entender para que ela serve e quais são seus danos ou benefícios. Em tudo, há inúmeras "facetas", que insistimos em dualizar como bom ou ruim, bem ou mal.
Conhecimento é fundamental para chegar ao equilíbrio, e não há felicidade fundamentada sem equilíbrio. Conhecimento / equilíbrio / disciplina / felicidade; moto contínuo em qualquer ordem.

Toda sociedade que se perdeu na sua própria cegueira acabou em crise. Conceitos se transformam em vícios; vícios são incrivelmente destrutivos. Todos eles. Vício é fator limitador.

A bicicleta continua sendo um paradigma. Mistura o bem e o mal, tentação e repulsa. Sair da casca do automóvel é praticamente impossível para a grande maioria. Mas há um dogma aí, sutil, mas é um dogma.
Quem disse que se tem que abandonar o automóvel e que a resposta está exclusivamente na bicicleta? O que é o prazer e o que é a dor?
O dogma muito bem vendido está em não procurar um meio termo, uma normalidade. O dogma está na ambigüidade: bem ou mal. O recheio ninguém sabe muito bem o que é, que gosto tem.

"Sabe, a ferradura, aquela coisa que vai na pata do cavalo? Então, eu fui no Teatro Municipal e fiquei na ponta de uma das ferraduras, perto daqueles tubos do instrumento (órgão). O teatro é lindo, tem alguns andares de ferraduras...." Explicação dada por rapaz de classe média alta com formação universitária.... sóbrio.

Em nossa cultura pop não há lugar para nada mais que sorriso, sucesso, prazer. Vender óleo de fígado de bacalhau é dureza. Todos nos queremos ver lindos e formosos no espelho. Mas é difícil conseguir isto se o intestino não funcionar direito. E, acreditem, entre os dentes e o "feofó" há muito trabalho a ser realizado pelo corpo.

Vida boa vicia. Mas não deve cegar. Afinal, se quer moleza, senta no pudim - por isto foi criado o banco de gel.

 
página anterior »