www.escoladebicicleta.com.br/home
artigos
Opção pela contra-mão

Terminado o feriado, a Rodovia Castelo Branco estava como sempre muito movimentada com o trânsito pesado, denso, rápido, repleto de caminhões, grandes ônibus e carros. Os motoristas, na tentativa de se livrar daquela confusão, demonstravam impaciência e alguma agressividade mais explícita, quase explodindo pelo pára-brisa. Pela marginal da rodovia, que no jargão técnico é chamada de via local, tão ou mais perigosa quanto à própria estrada, uma quantidade assustadora de ciclistas vem pelo acostamento, na contra-mão, pedalando forte. Seguem seu caminho para entrar na Marginal Tietê também na contra-mão. Querem alcançar um pouco à frente, uns 500 metros ou mais, a Ponte dos Remédios, para então cruzar o Rio Tietê e seguir seus caminhos para o trabalho.

A Ponte dos Remédios é relativamente estreita para o seu tipo de trânsito. Por ela passa de tudo: trânsito leve e pesado, quase uma continuação da marginal e da estrada, mas por lá ainda circula uma massa de pedestres e ciclistas vindos de todos os lados, não apenas os que vêm na contra-mão da estrada. Não há outra opção que não seja atravessá-la, e isso é feito pedalando por onde mais lhes convém, julgam ser seguro ou onde é possível. Não importa: cruzam pela mão de direção junto ao trânsito pesado, entre as rodas de caminhões, pela contra-mão, pelo asfalto ou mesmo pelas estreitas calçadas, espremendo pedestres contra o pára-peito e a vista do imenso rio fazendo a curva com suas marginais lotadas. Não atendem a pedidos das autoridades ou a alguns poucos xingamentos da população que caminha. Simplesmente tratam de seguir em frente. Não há lei, mão de direção, mãe, autoridade, ou grito de saudação que afaste aqueles ciclistas trabalhadores de seu destino. Lá vão eles para o trabalho. Há bocas em casa para alimentar.

De cima da Ponte Morumbi é possível ver praticamente a mesma situação. É pouco menos absurda no que diz respeito à contra-mão porque o acesso é mais complicado e menos atraente, mas de resto é a mesma confusão de tantas pontes de São Paulo. Quem se detém um pouco lá em cima e olha para a Marginal Pinheiros no seu horário de pico se assusta com a quantidade de magrelas que transitam entre os carros pela via local. Um ou outro segue pela expressa, e há até os idiotas que preferem pedalar na expressa à esquerda. Do outro lado do rio, na pista que conduz aos bairros, no horário de pico da manhã, o acostamento serve de ciclovia e traz uma quantidade assustadora de ciclistas pedalando na contra-mão para cruzar as pontes e seguir para o Centro.

Quem conhece aqueles caminhos, aqueles bairros, sabe que não há outro jeito, não há alternativa. Não há saída racional para chegar ao trabalho, que normalmente fica do lado oposto do rio, a não ser caminhar ou pedalar contra o trânsito. É insalubre, é poluído, é barulhento. A poeira levantada pelo trânsito entra na alma, nos pulmões; é horrível, mas não há alternativa. Nenhum destes "infratores" é moleque, o que se nota pela vestimenta e comportamento. Simplesmente querem trabalhar, querem caminhar para um futuro melhor.

Ironia do destino deste futuro construído sobre o sonho da rapidez e liberdade do automóvel, a bicicleta se converteu em um processo mais rápido de locomoção vindo na contra-mão. Insensata? Sim, mas muito mais rápida.

Para deixar a contra-mão e chegar à Av. Vicente Rao, há duas formas desafiadoras: enfrentar uma passarela estreita com uma rampa de curvas em cotovelo, muito apertadas, ou simplesmente cruzar a Marginal Pinheiros para alcançar a calçada que está logo ali. As duas formas são muito utilizadas. Subir na passarela requer uma boa dose de técnica de pilotagem para fazer os cotovelos sem tocar a calça nas imundas laterais. Quando se depara com um pedestre é inevitável disputar quem sujará a roupa porque só com um ou outro encostado é possível o cruzamento. Já atravessar a Marginal e seu trânsito rápido e intenso pode levar a situações mais complicadas ainda. O cruzamento para a ponte está em um ponto cego para os motoristas da própria Marginal e da alça de acesso. O ciclista espera, espera, e de repente vai. Quando chega à ponte tem que pular um muro de proteção o mais rápido possível para não ficar no meio do caminho dos automóveis. Não deixa de ser emocionante e altamente perigoso.

Vá até a periferia de qualquer grande cidade e notará hordas de pedestres caminhando pelas ruas no meio do asfalto, isso quando há asfalto. Calçada utilizável é artigo raro, quando há. Na maioria das periferias não há local apropriado para pedestres, nem onde o poder público se faz mais presente. Experiência assustadora é a primeira visita à Cidade Tiradentes, bairro isolado no extremo leste de São Paulo. É um gueto de zumbis que caminham pelas ruas sem destino. É difícil ver aquela situação de forma diferente. De vez em quando passa um ciclista, mas os zumbis estão lá, sem preocupação de serem atropelados. Na rua, o asfalto, este mínimo de melhoria pensado para o carro, foi tomado por eles quase como um único elo com a civilização que vêem pela TV. Andar no asfalto deixa a esperança de que aquilo ali ainda poderá ter futuro.

E, se estes que não têm calçadas e pedalam pela contra-mão da via expressa fossem colocados à frente para escolher entre uma boa calçada e sapatos confortáveis, uma boa ciclovia e bicicleta de qualidade, ou uma moto ou carro, naquelas condições não optariam pela realização do sonho: a moto ou o carro? E então, a partir de suas escolhas, pedestres e ciclistas se tornariam empecilhos à liberdade individual de dirigir sua própria moto ou carro.

Não é a bicicleta que está na contra-mão, não é o pedestre que invade a rua, é a característica da cidade brasileira, em especial São Paulo, que segue invadindo a contra-mão da história.

Todo indivíduo quer respeito. Faz parte da natureza humana, é lei de sobrevivência. É ser caçador ou saber ser caça para não morrer na mais banal investida. Respeito nada tem a ver com subjugar o outro, como a cidade brasileira faz com milhões. Nossas cidades não são, a cada dia, mais medievais, mais ridículas? São Paulo dos muros, da segurança particular, dos rios praticamente intransponíveis para os mais pobres é o exemplo máximo invejado (e odiado), mas seguido por tantos ou por quase todos. Atrás dos muros e sistemas de seguranças particulares não há respeito porque respeito tem suas bases no diálogo.

Pedalar na contra-mão deve ser recriminado porque representa um sério perigo para o ciclista e o pedestre. Mas, olhar aquela massa tentando chegar ao trabalho pelo caminho que lhes é mais sensato, não nos leva a pensar profundamente? Talvez esta massa na contra-mão da história, pelo menos desse nosso pobre momento de urbanidade, nos conduza a um futuro de respeito. A humanidade segue por caminhos estranhos.

 
página anterior »