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A Rã

Zumbi, o menor dos dois pequenos poodles pretos, tem um forte instinto caçador. Felizmente quando o sapo cruzou saltitante sua frente, ele estava com o nariz enterrado em algum cheiro especial. Eu não podia acreditar que aquele sapo havia cruzado a rua Oscar Freire, passado entre carros estacionados e subido na calçada. E naquele exato instante seguia em direção do Frevinho, uma das lanchonetes mais tradicionais de São Paulo. Só pode ser piada! Monty Python!
- Um sapo! Um sapo! Olha, é um sapo!
- Que sapo? E logo Tereza percebeu sobre o que eu estava falando, e seu rosto e voz se alteraram automaticamente para reforçar o nojo imediato que sentiu - Sapo... Que sapo?
E ainda sem ser notado por Zumbi, o sapo pulou mais duas vezes e encostou-se na parede do Frevinho. Lá ficou imóvel, quase invisível. Um sujeito cruzou a rua falando ao celular, e eu apontei para o pequeno volume marrom, que mais parecia um desses montes de sujeira canina, que enchem nossas calçadas. São as pedras da vida que devemos pular para seguir em frente, pensei filosoficamente. Mas esta pedra era diferente, saltitava graciosamente para frente. Já pensou se as fezes dos cachorros saltitassem pelas calçadas? Ia ser engraçado.
Bom, enfim, o que está fazendo um batráquio no meio da rua mais chique do país? Uma rã? Ou é um sapo? Personagem de conto de fadas procurado? Se minha namorada der um beijo nele, ele se transforma em príncipe e eu me aposento? Uau! Estarei salvo?
- É um sapo, olha ali, é um sapo! Chamei a atenção do sujeito que cruzava a rua falando ao celular.
- Sapo? No que o camarada se aproximou para olhar de perto, o pequeno animal deu mais um pequeno pulo, o que só fez confirmar a todos que aquilo era de fato um sapo. Antes de desligar a ligação, o transeunte comentou o absurdo, e ainda com o telefone perto da cabeça, abaixou-se para ver melhor o inusitado ser.
- Você viu de onde ele saiu?
- Bom, respondi, a pergunta é: o que está fazendo um sapo no meio da Oscar Freire?
Olhamos bem em volta para ver se algum lugar, objeto ou situação pudesse explicar aquela presença inesperada. Nada. Silêncio.
- Ele não pode ficar aqui.
- Você conhece o pessoal do Frevinho para pedir um saco plástico?
- Conheço.
E lá fomos nós dois, enquanto Tereza segurava as coleiras tencionadas pelos dois cachorros curiosos.
Ele pediu o saco plástico, explicamos a situação e o gerente parou por um momento, olhando-nos no fundo dos olhos, pensando consigo mesmo que a noite traz fatos que só quem a vive acredita. Ele entendera o que nós havíamos dito, mas preferiu não dar ouvidos ou questionar. E assim o saco plástico foi entregue, em meio a um silêncio macabro. E nele coloquei o sapo.
- Seria um sapo ou uma rã?
Voltamos para casa, sapo ou rã, os dois cachorros agora alucinados com o saco plástico vivo, Tereza e eu. Sapo ou rã, esta é a questão. Liguei o computador e abri o Google para pesquisar. Tereza no outro extremo da sala, rã ou sapo quieto no saco, cachorros mais tranqüilos, mas ainda prontos para o bote. Tereza longe.
- Qual é o problema? É só um sapo. Olha o sapo. Vem cá.
- Sai da minha casa, sai daqui! Leva esta coisa para onde você quiser, mas sai daqui! SAIIIII! Urrava aflita, encolhendo-se toda pelos cantos da sala e atrás das portas.
- Vou-me com o príncipe de sua vida.
- O que vai fazer com ele?
- A única coisa que me ocorre é o lago do Ibirapuera.
Continuo sem saber se o bicho é sapo ou rã. Seguramente um batráquio. O que fazer com ele? Lago do Ibirapuera, sem dúvida. Mas será correto, saudável para ele? E os gansos? O príncipe não corre o risco de virar comida?
Responda-me: o que se faz com um sapo que se perdeu no meio de São Paulo? Ou mesmo com o bugio que passeava pelas árvores do Ibirapuera lotado? Ou o sabiá, o alma-de-gato, as mudas de árvores, e tantos outros pelos quais sofri a incerteza de como conservar suas vidas? Não faço idéia e sei que a imensa maioria também não faz. Não sabemos mais como lidar com a natureza. Perdemos esta relação há muito. Deprimente.
A bicicleta passou a ser via política para mim a partir do momento em que não consegui mais me manter no movimento ambientalista. Na época, estava preocupado em cuidar da sobrevivência de bichos e plantas. Fico feliz com o resultado de todos estes 25 anos de trabalho, algumas vezes de luta. Estamos chegando lá, um pouco lentamente para meu gosto, mas estamos chegando lá.
Bicicleta ainda é motivo de alguma desconfiança ou chacota, mas a cada dia ela toma um centímetro mais de espaço e a cada minuto há alguém mais feliz e preocupado com a vida. Hoje bicicleta está se tornado de fato questão ambiental e de sobrevivência. Nós ciclistas ambientalistas várias vezes fomos ridicularizados até dentro dos próprios movimentos ambientalistas. Seguimos nosso caminho. Mais que isto, nos divertimos para valer pedalando. Tornamos-nos felizes. Nada melhor para o meio ambiente. Valeu e vale a pena.
 

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